domingo, 9 de setembro de 2007

Teu Abominável Mote: Uso Motos

Volta e meia eu tomo uns tombos. E me estrepo inteiro. Porque eu sou um motoqueiro malvado. Já viu um cara carrancudo numa moto grande, com o corpo coberto por couro e um capacete que parece um penico, portando um bigodão cheio e com cara de quem talvez te degole num ataque de fúria se a cerveja dele não estiver gelada o suficiente? É a versão clássica, que já caiu em desuso. O moderno é um cara carrancudo numa moto pequena, com o corpo coberto por uma capa de chuva e um capacete que parece ter sido usado como penico, portando um bigodinho de cobrador e com cara de quem talvez arranque seu espelhinho num ataque de pressa se a pizza dele não estiver quente o suficiente.

Só pra explicar rapidamente: o cara que compra uma Harley hoje está querendo imitar o cara que tinha uma Harley lá pelas décadas de 50 e 60. Então gasta uma puta grana numa moto cara e cheia de triquetriques como freios abs e mp3 player, faz seguro e sai viajando pelas cidades cheio de acessórios bonitinhos. Só que o harleiro que a gente vê nos filmes só usava Harley porque era uma moto barata. Aliás só usava moto porque era a coisa mais barata e fácil de manter rodando. O verdadeiro espírito da Harley Davidson hoje vive nos motoboys de CG, que andam por aí arrebentando a moto, pouco se fodendo pra todo mundo e (essa parte é ralmente importante) fazendo uma gambiarra atrás da outra pra manter aquela pilha de metal fedido a funcionar. Se fosse feito um filme sobre motoqueiros de Harley hoje, aliás, as grandes aventuras desses jovens da melhor idade seriam batalhas verbais com o mecânico inescrupuloso de uma concessionária vampiresca. E talvez um final trágico quando ele usasse um celular para sabotar os marcapassos dos nossos heróis.

Bom, dane-se. Eu vou falar de motos. Só um pouquinho. Porque eu fui para praia no feriado com uma motoquinha e foi uma viagem alucinante, a começar pelo trânsito nada convidativo. Resolvi seguir sem pressa, a uns 80km/h, numa toada tranqüila para privilegiar minha integridade física. Deu certo o plano, mas minha integridade mental foi para o diabo graças aos espelhinhos que insistiam em tentar lamber meus dedos. É legal pegar estrada com os domingueiros. Lembra muito River Raid, mas com inimigos novos. O boyzinho distraído, o velhote caquético, o pai de família que está gritando com o Joãozinho, o vendedor ambulante que, mesmo tendo sido quase atropelado por vinte motos no último minuto, ainda não entendeu que elas trafegam entre os carros, o tiozinho cruzando a estrada com uma bicicleta nas costas (no nível hard ele sai de trás de um ônibus), motoqueiros malucos que não deduziram que existem outros motoqueiros malucos na estrada etc. Eu gosto especialmente de dois extremos: os apressados e os tartarugas. Os apressados são os motoboys, eu acho. Eles têm aceleradores binários nas motos: é "on" ou "off", "on" sendo a posição mais assustadoramente aberta do venturi (tô chamando de pé-de-chumbo de um jeito meio baitola). Já os tartarugas são os cabaços que acham que andar a 20km/h vai compensar a hilária falta de habilidade deles. Esses são os maiores grupos de risco e vários exemplares ficam sendo exibidos ao longo do asfalto para quebrar a monotonia da viagem. Eu contei cinco.

Motoqueiro morto na estrada é muito legal, aliás. A polícia cobre o corpo com uma lona e depois pára todo mundo pra tirar as motos e os corpos. Detalhe interessante a ser notado é que quando a moto está inteira, o corpo está destruído. Se o corpo estiver inteiro, a moto estará destruída. Acho que quanto mais difícil e urgente for, pro cara, consertar a moto depois da batida, mais chances ele tem de sobreviver. Bom, enquanto os presuntos são removidos, vários outros porcos já chegaram ao lugar e ficam acelerando, impacientes. Assim que o policial libera a passagem do povo, sai o maior bando de motoqueiros que eu já vi na minha vida. Umas sessenta motos saem correndo bem à frente dos carros e só se vê motoquinhas na estrada. Nunca me senti tão quentinho por dentro, à exceção da vez em que enfiaram arame incandescente na minha uretra. Mas isso passa rápido, em três minutos a estrada já é corredores de novo, com os mesmos personagens de sempre.

O que começou a ficar perigoso quando eu comecei a ouvir músicas mais lentas. Algumas davam uma vontade quase irresistível de fechar os olhos, acelerar e sentir a sensação gostosa de dormência enquanto o chão e os carros te transformam num cara mais flexível. Some isso ao vento gelado que toma conta quando você está descendo a serra e você tem uma combinação perigosa. Porque o medo, o pavor mesmo, gela o saco. Se ele já estiver bem gelado, você nem sabe mais quando está temendo pela vida. A parte boa é que até a galera dos 20km/h parece ter criado colhões. Na verdade eles estão só dormentes. E doloridos, por causa da combinação do vento e de um banco ligeiramente mais desconfortável que uma cadeira da Brahma bamba e sem encosto. Isso muda quando se entra no túnel.

Pra que você entenda bem a experiência do túnel, caso não tenha experiência em mecânica, vamos comparar seu corpo a uma moto. Imagine que seu corpo é um pouco mais leve. E movido por um motor OHC monocilíndrico de 125cc refigerado a ar. Viu que bosta? De repente, fodeu de vez. O túnel é a verdadeira Casa Maluca da rodovia. O chão está inclinado e você não sabe porque não tem referências confiáveis, então só percebe que começa a andar cada vez mais rápido e na diagonal. Por causa da entrada contínua de carros no túnel alguns trechos têm ventos equivalentes a três doses de cachaça, te deixando bem bambo. E o funk pancadão do carro pelo qual você passa te dá sustos incomensuráveis graças ao filho da puta do Doppler. Ah, o túnel é quente. Bem quente. O que faz com que você perceba que o seu saco gelado está te avisando que VOCÊ VAI MORRER! E se essa opinião conflitar com a do cérebro, vá pelo saco. Não coincidentemente dois dos motoqueiros mortos estavam nesse túnel gostoso.

De qualquer forma, quatrocentos quilômetros depois eu estava em casa, feliz da vida e oferecendo minha alma por uma massagem e um balde de gelo para a minha bunda.