Não é que ele estivesse triste - não estava. Estava só cansado. Muito. Tinha vivido já por trinta anos, vinte e quatro horas por dia, sem um segundo sequer de folga. Mesmo quando dormia, sonhava estar fazendo alguma coisa, então não era um período que contasse como descanso.
Tinha isso todo ano, especialmente pela época do natal. E não sabia se tinha a ver com as festividades. Mais especificamente passar pelas festividades sozinho. Então se lembrava do porquê de passá-las dessa forma: era o menor dos males. O Natal, o ano-novo e todas essas porcarias eram, para ele, como uma grande festa de escritório. Circular pelo salão cruzando com pessoas com as quais não tinha nem fazia questão de ter intimidade, cumprimentar e esperar até que o negócio todo virasse o final de um filme infantil ruim: um monte de clichês sem sentido nem nexo e todos sentindo a alegria de receber amor e afeto sinceros e inventando umas mentiras para não ficarem atrás nas palavras. Logicamente se convencendo de que estavam dizendo a verdade, embora a verdade desse dia não valesse nos outros 364 dias do ano (365 em anos bissextos, sejamos didáticos).
No ano passado tinha sáido e comprado uma arma. Após um período de indecisão entre um pacote de salgadinho ou uma arma. Mais especificamente, entre Cheetos Bolinha e uma Smith & Wesson 0.357. Pensou ter optado pela Smith & Wesson por ser mais letal. Depois reviu o raciocínio, considerando como o consumo exagerado de salgadinhos é nocivo à saúde, quão facilmente uma criança poderia se engasgar, como seria fácil asfixiar uma pessoa com a embalagem e como, se você se escondesse em um arbusto, esperasse um velhinho passar e sa´sse gritando, pulando e jogasse o saquinho de Cheetos nele, poderia causar um enfarto. Passou alguns dias pensando a respeito até perceber que comer, enfiar na garganta de uma criança ou jogar em um velho uma Smith & Wesson faria provavelmente mais estrago que o pacote de Cheetos. Tinha a questão da embalagem, mas resolveu embrulhar a arma em um saco de supermercado e deu-se por satisfeito com seu raciocínio original quatificador de letalidade. Era um homem muito preciso, perceba.
Tinha chegado a usar a arma, vez ou outra, em uma academia de tiro. Bastou pouco tempo para perceber que não achava aquilo legal. Ficou matutando sobre o porquê de ter resolvido comprar a arma, então, e achou a resposta justamente na letalidade. Volta e meia ficava a contemplar aquele pedaço de metal esquisito e matutava sobre a facilidade de matar. Segurando um aparelho não só feito para tirar uma vida, mas até dez ou doze por carga, a gosto do proprietário, pensava na fragilidade vital, na brevidade tão ridiculamente longeva do tempo de uma pessoa aqui na terra, especialmente o de um pirata. É pouco para o que se existe para fazer, mas é ao mesmo tempo muito mais longo do que as pessoas merecem. Você dá cinqüenta ou sessenta anos de vida para uma pessoa e ela passa um terço dormindo e o resto desperdiçando. É, a única coisa que se faz de certo nessa vida é dormir. É um mecanismo que a vida nos deu para evitar que a gente invista a totalidade do nosso tempo em coisas babacas, como aquele aglomerado de pedaço de metal retorcido, uma casa ou um casamento. Ainda assim muita gente dorme pouco. E mal. Ele, por exemplo.
Podia passar mais tempo filosofando, mas estava quase na hora do jornal, então ele guardou a arma e a filosofia de bueiro na gaveta e foi ligar a TV. Parou e pensou em usar a arma para redecorar o apartamento com os próprios miolos. Matutou por alguns segundos e decidiu comer Cheetos Bolinha. Depois procederia a expandir as ideías com chumbo, não tinha pressa. Até porque queria ver TV. Estava curioso para saber se as pouquíssimas ações que ele tinha haviam valorizado. Não que fosse ter graves conseqüências financeiras. Não faria nenhuma diferença, nem que as ações fossem da própria Smith & Wesson. Era só passatempo e ele estava bem ciente disso. Mas já tinha vivido tanto e, ultimamente, só encontrado algum prazer em ver o jornal, que podia esperar por mais cinte minutos divertidos. Torceu para não acabar com os Cheetos antes do jornal, porque aí iria pipocar a cachola sem ver o segmento de esportes.
Pôs a arma ao lado da cabeceira e abriu o pacote de salgadinhos. Pensou sobre a ordem que tinha adotado para as duas ações e considerou ter começado a comer depois de ter pego a arma. Imaginou se não teria feito isso para ganhar algum tempo a mais de vida, subconscientemente tentando se apegar a ela. Buscou uma razão para viver por alguns segundos, enquanto mastigava o isopor amarelo do mal, e não encontrou nada. Racionalizou então que tinha feito na ordem em que tinha feito para não encher a arma de pó e gordura, ficando bastante satisfeito com esse raciocínio. Amaldiçoou-se por ter gastado algumas bolinhas de vida pensando em vez de ver TV. Seguiu-se um breve pensamento sobre como ver TV era, em inúmeros níveis, mais produtivo que pensar, mas ele rapidamente se extinguiu até para não constituir uma certa hipocrisia.
A primeira notícia mostrava um acidente em um parque de diversões. Ao ouvir os depoimentos das pessoas, começou a colocar dois Cheetos por vez na boca. Idiotas essas pessoas que gostam de parques de diversão. Vão lá para ter adrenalina, para terem seus corpos chacoalhando além do controle. Para ter emoção. Porque dizem gostar. Depois ficam pendurados, chacoalhando além do controle e cheios de adrenalina e choram e se apavoram. Se parassem um pouco veriam que o brinquedo quebrado exerce exatamente a mesma função do brinquedo que funciona corretamente. A diferença é que às vezes te mata ou te aleija. Mas grande merda, ele estava para morrer ou ser aleijado e não ligava. Porque já tinha visto que a vida é tão babaca e um desperdício tão profundo de tempo que leva as pessoas a irem para parques de diversões serem chacoalhados. Você pergunta a um imbecil (e quem dera fosse só um) o que ele quer fazer no final de semana e ele quer ser sacudido até ficar zonzo. Bom, ele queria enfiar uma bala na cabeça. E, comparativamente, seria o taxado de louco. Por gente sacudida.
Deixou alguns salgadinhos derreterem na boca enquanto passava um comercial de cerveja porque aparecia uma mulher gostosa. Voltou a mastigar freneticamente quando acabou o intervalo.
Já tinha comido mais da metade do pacote. Suas ações não tinham subido. Achou engraçado. Passou uma notícia bonitinha sobre uma mulher, em algum lugar, que fazia um trabalho asissistencial em prol de algumas crinaças ou coisa assim. Em alguma região pobre. Jogava os salgadinhos pra cima e comia. Os que erravam o alvo ele considerava perdidos, porque o carpete era sujo. Ficava ainda mais quando ele pisava nas bolotas caídas. E ria, porque sabia que não ia ter que limpar. Viu notícias sobre um assalto. Ficou entediado. Decidiu virar o pacote de uma vez. Engasgou. Desesperado, começou a se contorcer porque tinha pago caro naquela arma e já tinha planejado estourar a cabeça, não ia tolerar nada com sabor falso de queijo estragando seus planos. Vermelho e quase sem ar, conseguiu cuspir o que estava na garganta. Era um vale-brinde. Valia outro pacote de Cheetos. As lanchonetes já estavam fechadas, então ele lavou as mãos, guardou a arma e deixou tudo para o dia seguinte.
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