Estava rolando uma partida de polícia e ladrão de gente grande pela avenida com direito a tiroteio e um cara morreu. Esses fatos não foram tão diretamente conectados quanto alguém pode imaginar a princípio. Veja bem: o tiroteio assustou o cachorro de uma madame, o que a levou a mimar o bichinho e largar o chuveiro aberto. Isso drenou a caixa e fez a pressão da água do prédio ficar baixa, o que motivou a reclamação de um morador ao zelador, que não ficou nada motivado até sua falta de motivação motivar uma segunda reclamação ao síndico, que conseguiu motivá-lo por motivos óbvios. Então o zelador subiu no telhado e, como todo mundo sabe, daí a morrer é um pulo. Que, no caso do zelador, foi motivado por um pombo que caiu morto em sua cabeça, vítima de uma bala. A cabeça do zelador chegou ao pavimento no exato momento em que o guarda Borrabotas foi baleado.
Quase “tempo” nenhum depois, o zelador “acordou” em uma sala muito bem decorada, chique, cheia de quadros neoimpressionistas, mesas de madeira maciça em estilo barroco, uma bandeja de prata, talheres de prata, um candelabro de prata e a reencarnação de Nietzsche em um vaso de prata. Reemprateação, no caso. Um folheto de papel velho e carcomido pregado com uma tachinha enferrujada em um belíssimo quadro de Toulouse Lautrec dizia “PURGATÓRIO – DIVIRTA-SE”. Ao fundo, bem distante, a música Safety Dance se repetia infinitamente.
Muito confuso, o zelador ficou ali ponderando o que diabos deveria fazer até chegar à conclusão de que deveria ponderar sobre as coisas, o que odeixou muito contente por poder se gabar de não ter desperdiçado tempo algum, mesmo que imaginasse que tempo não seria algo exatamente escasso por ali. Ponderou sobre sua vida, sobre sua mortalidade, arrependeu-se levianamente de tudo que fez de errado e pensou estar pronto para o céu. Esperou mais um bocadinho, ponderou mais um bocadinho e chegou à conclusão de que, se não tinha ido ainda, é porque deveria ponderar mais. E foi o que fez.
Esse ciclo se repetiu até o zelador ficar ridiculamente entediado e cheio de dúvidas. Começou a considerar a hipótese de ficar preso ali para todo o sempre, sem uma revista pornográfica de prata sequer, o que o deixou levemente ansioso. Resolveu puxar um papinho com Nietzsche.
-Ei, Friedrich, o que é que a gente fica fazendo aqui?
-Sendo um vaso de prata vazio.
-Hum... deixa eu ver se entendi. É pra eu me livrar de todos os meus pensamentos e meus preconceitos, descarregar tudo que já aprendi na vida e me abrir a novas idéias e experiências divinas, que eu não poderia vivenciar enquanto ainda mantivesse resquícios do meu antigo eu moralista, que sou agora?
-Não, seu idiota. Eu fico sendo um vaso de prata vazio porque sou um vaso de prata vazio. Você fica sendo um idiota, porque é um idiota. Não me aporrinhe.
-Pô, você não foi muito útil. Vamos lá, eu estou confuso e perdido aqui. Ajude-me com um de seus pensamentos sábios.
-Tá. Imagine que você é apenas uma maçã no meio de milhares de outras maçãs.
-Ok.
-Pois você é a mais idiota de todas as maçãs! Não me aporrinhe!
Resignando à conversa por meio de um covarde consenso com as idéias expressas por seu interlocutor, o zelador sentou-se e ficou pensando lá com seus botões o porquê de ter talheres se não havia comida. Talvez não precisasse comer no purgatório. Essa linha de pensamento não combinava, contudo, com a fome que ele sentia. Seguindo um pouco pela corrente de pensamento do sistema digestório, logo reparou que a sala não tinha portas. O que quer dizer que não havia nenhuma saída para um banheiro. Isso era um pouco preocupante, porque o zelador tinha morrido num sábado às três da tarde, depois de ter devorado uma baita feijoada. Considerou o que fazer, numa batalha contra o relógio biológico, até chegar a uma conclusão que não deixou Nietzsche nada feliz. E, ao executar, sob protestos do outrora bigodudo balde, sua idéia, ascendeu ao céu.
Deu de cara com a figura de um velho pensativo. “Deus?”, perguntou.
-Que é?
-Deus, é você?
-Tanto faz.
-Tanto faz? É provavelmente a coisa mais importante que já aconteceu em toda a minha vida. Ou pós-vida. Eu preciso saber se é com Deus mesmo que eu estou falanzo.
-E se eu dissesse que sou? Você acreditaria? Podia ser o Belzeba mentindo.
-Bom... é...
-Então corta o papo. Se eu quisesse ficar ouvindo suas asneiras eu me apresentaria como uma orelha gigante, não como um velho sábio. O velho sábio fala, você ouve. O velho sábio fica quieto, você fica quieto.
-Mas Deus, tenho tantas perguntas. O sentido da vida, qual é? O que eu aprendi ou devia ter aprendido? Como e por quê o senhor criou o universo? Qual religião é a certa? E por que eu estou sozinho aqui com o senhor? Cadê os outros mortos? Fui o único digno?
-Olha, chega. Eu já te avisei e você me aporrinhou com a sua tagarelice, igual a todo o resto dos que já morreram. É por isso que eu estou sozinho e que você vai pro inferno, como todo o resto dos tagarelas.
-Mas Deus, espere! Você não me avisou das conseqüências.
-Dane-se. E eu mandei um barco, um helicóptero e Nietzsche em forma de balde.
-Quê?
-Foi uma piada.
-Foi uma piada? O que, bom Deus? Sua última frase? Sua zombaria de Nietzsche, ao fazê-lo receptáculo fecal? A forma como eu morri? A criação do universo?
-Bom... tudo isso.
E, com essas palavras e com o apertar de um botão, despachou rumo ao inferno o zelador.
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Um comentário:
hahaha! muito bom! gostei demais do texto!!
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