Sinta-se à vontade para perder meia hora com o vídeo acima. É instrutivo e algumas partes são bastante divertidas. O autor, que vamos chamar, obviamente, de Bigode, entrevista algumas pessoas e pergunta sobre o valor moral do nazismo, argumenta inquisitivamente contra o aborto e depois começa a pregar. Eu vou tentar ignorar a parte da pregação e me concentrar na argumentação.
Bigode começa a questionar as pessoas, ajustando a dimensão e o escopo das suas perguntas de modo a conduzir os entrevistados a afirmações categóricas que se contradigam. Esse, crianças, é o método socrático. Ele é extremamente eficiente para dissolver certezas, se baseando na desmontagem, no isolamento e na recombinação de partes de um raciocínio e nas pequenas rachaduras da linguagem. Bigode faz um bom trabalho ao embaralhar as convicções de quem apóia ou apoiava o aborto com sua magia recombinatória de cenários hipotéticos, mas o grande problema do método socrático é que ele se presta exclusivamente às eliminação de todas as certezas. Ele não invalida só uma resposta, mas confere intangibilidade à pergunta. Utilizá-lo para defender uma certeza de caráter oposto - no caso, a de que o aborto deve ser proibido - é contraproducente e o que eu chamo de apropriação indébita. Contraproducente porque te deixa necessariamente em posição de levar um xeque-mate lógico em dois movimentos:
-O que você quer dizer é que não cabe a nenhum ser humano decidir quem tem direito à vida.
-Exato.
-Então por que você está querendo tomar essa decisão, e por todos?
Veja bem: se você não decide quem morre, você não decide quem vive. E, do ponto de vista da lógica, tanto faz dizer "todos morrem", "todos vivem" ou "alguns morrem, alguns vivem", todos esses quadros são decisões e você acabou de anular todas elas. E, se você mostra que não se tem o direito de terminar uma vida, por que existiria o direito de criar uma vida? Bigode não teria como sair dessa sem um deus ex machina. Ou, o que eu suspeito que aconteceria, um deus ex deus. Mas esse diálogo não acontece por causa de outro truque dominado por sócrates (e, talvez, na realidade, mais digno de ser chamado de método socrático que o que conhecemos hoje por esse nome): discuta exclusivamente com gente estúpida. No caso do vídeo, essas pessoas são incapazes de fazer qualquer distinção entre um feto e um judeu moribundo. Sequer questionam a comparação. Respondem a perguntas complexas com "sim" e "não", alheios ao fato de esse questionamento binário levar a grossos erros de interpretação e/ou embutir premissas na resposta (a propósito, responda sim ou não: você parou de praticar zoofilia coprófila?). Se contradizem N vezes, gratuitamente, antes mesmo de serem induzidos pelo interrogador. E não notam a falha mais grave do vídeo. Jesus. É, eu acabei entrando na questão religiosa. Merda.
Como é que alguém pode ser contra aborto e citar a bíblia? O que é a história de Jesus se não uma espécie de aborto pré-datado? O cara teve o filho dele aqui com o explícito destino de morrer torturado porque era conveniente aos seus propósitos. Se você quiser dizer que Deus não precisa jogar pelas mesmas regras, ok. Claramente filicídio não é um grande tabu para ele. Além disso, Bigode fala do dia do juízo. E deixa bem claro que algumas pessoas vão para o inferno pelo que se presume que seja toda a eternidade. E que o feto ou bebê é inocente. Então não seria um grande favor chacinar os inocentes antes que eles possam virar algo como aquele cara do moicano azul e acabarem indo pro inferno? O que é a privação de alguns poucos anos num lugar de merda comparado à garantia de uma eternidade no paraíso? Sinceramente, eu esperava mais de alguém digno de ser chamado de Bigode.
Um cara inteligente, elegante, perspicaz, bem-apessoado, afável, atlético, querido, sensível, bonito e experiente disse que eu sou um bosta.
Sobre Este Blog
Seguinte: primeiramente, se você está achando os títulos aleatórios, pode retroceder pelas postagens e ler a primeira, onde eu expliquei um monte de coisas. Eu deveria reexplicar aqui, tanto para poupar seu trabalho quanto porque a primeira postagem do blog foi uma das piores e mais confusas, muito embora eu tenda a achar que quanto mais confuso algo for, tanto melhor ele se tornará ao final da confusão, se existir, mérito esse que pode ser aplicado ao resto da linha temporal do algo em questão, ápice da confusão incluso, já que o fim necessariamente está ligado ao meio e é dependente dele (sendo, neste caso específico, até provocado por). Entendido isso, o resto segue uma linha semelhante de um raciocínio sutil.
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