Pode Vir Quente Que Eu Estou Fervendo
Eu tenho uma linha de pensamento bastante romântica no que tange a veículos automotivos. Acredito que ele deva poluir pouco e retratar seu usuário com alguma precisão. Isso está cada vez mais raro hoje em dia, com todos esses Gols e Palios andando pelas ruas, todos iguais, quase indistingüíveis. Mesmo carros mais caros, portanto mais raros, quando avistados, têm enormes chances de estarem perto de uma ou duas duplicatas.
Não que eu seja defensor ferrenho de carros "tunados", super potentes, preparados para rachas, cheios de porcarias como aerofólios gigantes, saias, luzes de neon, pinturas psicodélicas. Não para meu uso, pelo menos, porque devo dizer que um carro desses só me agrada por dizer muito sobre seu dono - uma besta que pegou um carro adequado e cagou nele todo.
Pois bem. Eu possuía um Siena cinza. Em nada especial, a não ser pelo aerofólio preto na parte traseira. E pelo câmbio de seis marchas pouco esperto. O que acontecia era ser a sexta marcha tão forte quanto qualquer quinta. E a primeira tão forte quanto qualquer primeira. Então tudo que eu fazia era ter que mudar mais marchas no mesmo espaço de tempo sem nenhuma vantagem. Ah, e eu preciso mencionar os amassados, ralados e descascados. Com o passar dos anos esse carro foi sofrendo alguns acidentes de percurso. Três carros, estando um deles imóvel no momento da colisão, e três pilastras, todas elas imóveis, apesar de alguns depoimentos meus.
É claro que eu nunca consertei um arranhão sequer. O martelinho de ouro é pura hipocrisia automotiva. Ostente suas cicatrizes de batalha com orgulho! Você sobreviveu ao trânsito! Assuma que você é braço-duro! E economize uns trocados. Não que isso importe; o relevante mesmo é o negócio de honra, ideologia e essas palhaçadas todas.
Some-se a isso o fato de o ponteiro de temperatura ter um misto de epilepsia com parkinson, sendo completamente maluco e ineficaz, e você tem um carro bacana, involuntariamente personalizado, reconhecível à distância pelo reluzir do ferro retorcido enferrujado. Eu gostava desse carro. Mas, cansado de uma vida de maus tratos, ele resolveu fugir numa noite gélida de verão, saindo da rua Saint Hilaire para nunca mais ser visto novamente por olhos humanos. Pelo menos não inteiro, eu acho.
Resumindo uma parte muito, muito (e muito) longa, fiz o B.O. e dei entrada na papelada do seguro. E recebi o dinheiro. A seguradora demorou para pagar, mas eu tenho a impressão de que fiquei mais tempo sentado na delegacia para fazer o boletim que as três semanas transcorridas desde que saí de lá até o dinheiro cair nas minhas mãos.
Estando com a maior sensação de riqueza da minha vida, saí em busca de um veículo. Longas pesquisas depois, pretendia pegar outro Siena, mas dessa vez um com o motor mais econômico da Fiat (aliás, o motor 1.0 mais econômico do mercado - tomem nota). Longas pesquisas depois e desisti de comprar o Siena porque o que eu havia ganhado do seguro não chegava nem perto de comprar outro carro. A menos que fosse velho. Foi quando eu tive a iluminação: por que comprar um desses carrinhos modernos que parecem de brinquedo se eu posso comprar um brinquedão antigo que quase parece um carro?
Então pesquisei e reduzi minha lista de veículos até chegar aos finalistas: Del Rey, Voyage, Santana e Opala. Desses eu estava mais inclinado a comprar o Opalão. Longas pesquisas depois, ao saber que consumo médio de um Diplomata era 4km/l, eu fiquei bastante desestimulado. E chutei o pau da barraca de vez. Eu ia pegar um carro velho e gastar o resto da grana do seguro para colocá-lo de pé, então que isso fosse feito com um carro que desse gosto em ser visto de pé. Quando migrei minha mente para os foras-de-série.
O vencedor, após uma grande contenda com o Puma, foi o Miura. E, para encurtar uma longa história (e, claro, algumas longas pesquisas), comprei um Miura Targa, um carro com o qual eu me identifiquei bastante. Ambos preferimos ficar longe de injeções, temos cabeças abertas, roncamos, nos recusamos a trabalhar de manhã e temos até a mesma idade. Agora pretendo virar alcóolatra para sermos um par perfeito. Até chamamos atenção na rua do mesmo modo - posso ver as cabeças virando e pensando "não acredito que essa porcaria funcione" agora esteja eu de carro ou a pé.
Arrumei uma coisinha aqui e outra coisinha ali, rodava pela cidade já naturalmente, embora não pudesse estacionar porque estava sem travas nas portas. Como ainda estou. E porque o freio de mão não funciona. Como já não funcionava. De qualquer forma, decidi ir de São Paulo a Mogi das Cruzes com meu veículo para testar seu desempenho na estrada e para mostrá-lo a meus familiares. O que retrata bem o conceito "uma péssima idéia porcamente executada".
Primeiramente o vidraceiro responsável por instalar travas elétricas, alarme e borrachas novas de vedação decidiu começar a trabalhar quando eu cheguei para buscar o carro. Preocupado com o rodízio, já que a placa tem final 0, o que me impede de circular com meu parceiro carburado pelo centro expandido às sextas, pedi para que apenas montassem e desmontassem a porta, deixando o vidro torto, para que eu pudesse sair e não levar multas. Não, na realidade não foi o que eu pedi. Mas foi o que fizeram enquanto eu "almoçava" um "sanduíche" bastante insalubre em uma "padaria" ao lado. Nesse meio-tempo, aliás, pedi o telefone para ligar para meu bom amigo Gilberto "Ay ay ay mis tacos" Silveira Gornati para avisar que não poderia levá-lo para o interior. Fui xingado e mandei-o entuchar algumas coisas em seu ânus como é de praxe. E dali a pouco o dono do estabalecimento de vidros, borrachas e companhia ligou para se desculpar, pois alguém tinha dito a ele que eu estava muito bravo pelo serviço estar atrasado. Saí de lá às quatro, esperando estar já na Dutra às cinco.
Acontece que eu fui muito bem, esbanjando felicidade, até a Marginal Tietê. Quando fiquei ainda mais feliz porque o afogador pôde ser desligado - o carro já estava quente e não morria mais. Percebi que estava com vontade de urinar. Guarde esta informação. Radiante, fui para a pista expressa, que estava tão parada quanto a interior, e fiquei ouvindo minhas musiquinhas de boiola serem tocadas no rádio. Dali a alguns segundos notei que o carro estava com a temperatura bem elevada. Pensei "droga de trânsito, eu e meu possante temos que ficar suando entre esses caminhões porcos!". Uma luz no painel acendeu. Com o desenho de um termômetro. Rezei para ser a luz que indica quando o termômetro do carro está quebrado, o que explicaria o porquê de ele estar marcando uma temperatura tão absurdamente elevada.
Um certo desconforto na espinha e a grande nuvem que saía do capô me diziam que não era nada disso. E, mesmo que eu não entendesse nada de carros, a expressão facial de um motorista de caminhão que estava ao lado já me dizia tudo que eu precisava saber - eu estava fodido. Todos me deram passagem, mas a essa altura o carro já não obedecia meus comandos. Tive que carregá-lo para o acostamento eu mesmo, cortando três faixas da Marginal. Isso pode não parecer muito divertido, mas quando você chega à parte de terra e percebe que está patinando porque não tem mais como firmar o pé no chão para empurrar seu veículo velho e fervido... meu amigo, que coisa engraçada. Especialmente para quem vê de dentro de um carro moderno e confortável. Então puxei o freio de mão. E abri o capô. E sentei. Olhei para meus gatos, socados em uma caixa de tranporte. Pela primeira vez no dia, pensei: "meu carro antigo não fazia isso...".
Um caminhoneiro estava parado, também, porque o trânsito de produtos inflamáveis não é permitido à tarde, no horário do rush. Fiquei batendo um bom papo com ele sobre carros velhos, acidentes automobilísticos, estradas e alternativas para burlar pedágios. Duas horas depois, já às sete, pedi a ele um pouco de água. Ele não tinha, mas abriu o reservatório do caminhão e me deu um bocado da água que o caminhão utilizava para conter e proteger os produtos químicos. E, enquanto eu colocava aquela água no meu radiador, pensava em criancinhas morrendo e famílias sendo explodidas na estrada porque eu tinha consumido a água de proteção do caminhão que bateu em uma carreta que derrapou na poça d'água quente que meu carro tinha deixado na pista. O que me fez abrir um sorriso discreto e pedir mais água.
Em uma nota paralela, sempre fui contra o arremesso de lixo nas estradas. Mas foi uma garrafa usada e suja de X-tapa que me permitiu levar água do caminhão até meu radiador, então sinto que devo alguma coisa aos porcos que causam enchentes. Talvez uma bifa e um beijo.
Prossegui, então, rumo a um posto, onde completaria o nível de água e seguiria viagem - ou voltaria para casa. Não cheguei a andar cem metros e parei porque o carro estava fervendo. Repeti todo o processo de abrir o capô, sentar, olhar os gatos etc. E fiquei parado, vendo uma Pampa à minha frente, parada também. Vinte minutos depois, a Pampa ainda parada, ocorreu-me que eu poderia ajudar em alguma coisa (e pedir um celular antes que minha mãe acionasse as forças armadas). Andei até lá e vi um mecânico gordo, sujo e asqueiroso bufando no motor deles. Tanto melhor. Pedi o celular e falei brevemente com o mecânico. Ele grunhiu alguma coisa em resposta e deduzi que ele daria uma olhadinha no meu veículo a seguir.
Enquanto isso liguei para minha mãe avisando que estava parado perto do Playcenter com o carro, mas que decidiria o que fazer e resolveria de alguma forma. Agradeci à senhora da Pampa por ter-me emprestado o celular e fui com o gorducho nojento ao meu carro. Quis pedir "por favor olhe meu carro sem tocá-lo", mas achei melhor deixar o sebo daqueles dedos lingüicentos entrar nas engrenagens para auxiliar na lubrificação e evitar o desgaste das peças.
Alguns olhares depois, ele mordeu alguns fios, desencapando-os. Pensei que fosse apenas uma pausa para uma boquinha, mas ele logo colocou os fios no meu carro e ligou a ventoinha diretamente na bateria. E disse que eu podia ir embora. Perguntei quanto devia e, neste momento, minha vida mudou. Parei de crer na bondade do ser humano. O filho da puta, cretino, escroto, corno manso, porco gordurento, cuzão, resto de porra seca regada a donuts, docinho de coco bigodudo do inferno, mulherzinha da cela do Tyson, cobrou oitenta reais pela porquice. Como eu estava animado, fiz papel de trouxa. Paguei, liguei o carro e fui embora. E parei no próximo acostamento porque estava fervendo de novo. Pela terceira vez. Mas quem está contando?
Foi a segunda vez no dia em que pensei "meu carro antigo não fazia isso...". Tudo bem. Fiquei lá e pensei em esperar o gordo escroto passar para que ele desse outra olhadinha, dessa vez grátis, sob ameaça de eu arrancar aquele bigode com meu calcanhar. O que seria uma pena, porque eu teria que jogar um bom tênis fora. Em vez disso parou um motoqueiro, olhou o carro e disse uma frase que salvou o dia.
-Que que houve?
-[Só me faltava mesmo um curioso de merda] Está fervendo.
-Deve ser a válvula entupida.
-[Merda, curioso e metido a entendido] É a ventoinha.
-Certeza? Geralmente é válvula.
-[E se eu chutasse esse cara agora?] Já falei com um mecânico.
-E você acha que eu sou o quê? Dono de uma padaria?
-[...] ...
Depois desse diálogo interessantíssimo, ele deu uma olhada no carro, enquanto um cara com uma Fiorino estacionava com o carro fervido também. Ele havia sido atendido havia pouco tempo por esse mesmo mecânico motoqueiro. Tinha desentupido a válvula.
Ocorria que a ventoinha dele não estava funcionando, também. E, vendo os dois carros, o mecânico ia mexendo, fuçando e pedia água. Eu buscava a água. Busquei quatro galões. O que quer dizer que eu atravessei a Marginal oito vezes. Com galões d'água. Sexta à noite, às oito e pouco. Excitante. Quando eu cheguei, pediram que eu segurasse uma peça do meu carro rente à calçada. Foi o que eu fiz. A peça foi despedaçada por um martelo enquanto meu pensamento exato era "legal, não conseguiu consertar, ficou com raiva e quebrou! Agora empresta o martelo aqui para eu bater no capô com tudo!". Acontece que ele arrancou um pedaço da válvula termostática para que meu carro ficasse o mais frio possível. Ligamos para testar. Ferveu. Tive pensamentos impuros. E o guincho encostou e disse "vim buscar esse carro".
Cinco segundos, mas muito mais tempo dentro da minha cabeça, depois, eu consegui perguntar um "quê?" muito xoxo. Ele reiterou: havia vindo com o propósito de buscar meu carro. Pensei que fosse a Morte dos veículos. Ou que fosse o guincho da prefeitura e o prefeito tivesse decretado meu carro uma calamidade. Talvez os deuses estivessem dizendo "renda-se, seu grande imbecil". Pensei nos meus gatos. E no sanduíche insalubre do "almoço".
Levou algum tempo até que eu conectasse o guincho à minha mãe (mentalmente, claro, embora naquele momento eu tenha desejado ir além). O que ocorre é que ela ligou para o meu pai, que ligou para um mecânico, que ligou para o guincho. E procurando por mim também estavam a CET, a DERSA e alguns comandos especiais familiares. A Polícia Rodoviária, no entanto, não desperdiça recursos procurando gente pela Marginal, como disse à minha estimada genitora - ponto para eles!
Reembolsado pela viagem inútil o guincho e resolvido o problema do motor com algumas gambiarras extras, o mecânico foi embora (não antes de um conflito civilizado com um maluco que eu preguiçosamente vou omitir), finalmente imaginei poder seguir viagem. O guincho, no entanto, muito gentil, ofereceu-se para me escoltar por alguns quilômetros, para ter a certeza de que eu seguiria bem a viagem. Tive vontade de enfiar a cabeça do bom homem nas câmaras de explosão do meu veículo e no meu joelho, alternadamente. Não que eu seja a pessoa mais ingrata do mundo. O que ocorre é que minha bexiga já estava explodindo. Cace nas linhas acima desde quando eu estava com o desejo forte de urinar! Puta que pariu, umas quatro horas espremendo minha bexiga e aquele maldito ser do inferno se oferece para fazer um favor? Aceitei, espumando de ódio e agradecendo, entrei no carro e pisei o mais profundamente que consegui do acelerador, esperando que o lento guincho me perdesse de vista. E o cara sempre ali, de forma que eu não poderia ir para a pista interior e parar em um posto. Mas quinze minutos depois eu cheguei à Ayrton Senna, já bem escura, parei o carro no acostamento e corri como o Cadeirudo, corri feito uma gazela tresloucada com um rojão atolado na bunda* e resolvi meus problemas em um grande barranco deserto.
E, muito feliz, para completar minha epopéia, tirei a capota do meu veículo, liguei os faróis ocultos e pisei fundo. Enquanto eu ensurdecia por causa do vento, aparava em minha testa alguns gramas de carga do caminhão de lixo à minha frente e me divertia loucamente com o brinquedão, pensei pela terceira e última vez naquele dia: "meu carro antigo não fazia isso". E rodei por mais algumas horas antes de ter que deixá-lo no mecânico. Onde está até a presente data de finalização deste texto.
*Nenhum animal foi ferido na confecção desta metáfora.
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