quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Bálsamo Cerzido

-Bom dia, Zé Carlos. Estamos aqui no Rio de Janeiro, onde a polícia reocupou o Morro do Alemão pela vigésima sexta vez. Houve muita troca de tiros, como é de costume, e muitos traficantes foram presos. Estima-se que o mesmo ou outro grupo de traficantes só se reestabeleça em cinco anos, que tem sido a média da duração das operações de pacificação desde que elas começaram décadas atrás, por volta de 2010. Aqui está um dos suspeitos sendo preso, eu vou tentar falar com ele. Oi, uma palavrinha aqui pra Rede de Comunicação Federal, por favor? Por que vocês sempre reocupam o morro?
-Bom dia aos senhores telespectadores. O que nós temos aqui é uma continuidade do ciclo violento das grandes áreas urbanas do Rio de Janeiro. Já bem disse Thoreau, certa vez, que o cidadão tem o dever de desobedecer as leis que lhe são injustas ou descabidas, pois caso seja extirpado de toda rebeldia, o sistema será inflexível e injusto. Pois bem: a persistência das drogas revela que existe...
-Ele está sendo agora colocado no camburão.
-Não tô, não. Olha, eu gostaria de debater esse assunto, até, por uma questão de...
-Vamos ali falar com o sargento. Sargento, como foi essa operação? Foi tranqüila?
-Minha filha, foi um tiroteio. Que merda de pergunta é essa?
-Não, não. Eu quis perguntar se tudo correu como esperado.
-Não. Um dos traficantes estava utilizando um tênis roxo. Isso foi altamente inesperado.
-Hein?
-Minha filha, eu estou aqui em pleno tiroteio e você vem cá, aparentemente disposta a tomar balas, pra vir me perguntar se está sendo tranqüilo, se tá tudo legal, tudo de boa, tudo azul? Porra, o minuto da TV custa caro demais pra esse tipo de pergunta babaca. Por que você não me pergunta sobre a futilidade de pacificar comunidades cuja população vai ser psicológica e/ou economicamente empurrada de novo em direção ao tráfico, que é um negócio arriscado mas cujo monopólio, pelo menos local, é praticamente garantido por leis proibitivas?
-Aparentemente o sargento não pode falar agora, está tudo ainda muito tenso por aqui. Vamos falar com um membro oficial da classe média, que não vive no morro e que provavelmente não vai ser muito afetado por nada disso que aconteceu aqui. Oi. O que você acha desta operação policial?
-Tem mais é que meter bala nesse bando de bandido! Passar fogo em tudo!
-É? Por quê?
-Porque é tudo vagabundo sem vergonha que fica roubando os outros.
-Entendo. Então o senhor apóia um estado policial absoluto onde a leniência dá lugar à repressão? Olhe, o senhor deve ter muita fá nos seus dirigentes políticos para dar a eles esse tipo de poder.
-Políticos? O cacete! Tem mais é que meter bala nesse bando de bandido! Passar fogo em tudo!
-Mas se o senhor está disposto a dar ao governo o poder de...
-Porque é tudo vagabundo sem vergonha que fica roubando os outros.
-Senhor, sua posição não faz muito sentido. Suas visões parecem conflitar, já que o Estado é quem financia e dirige a polícia. Pode explicar seu ponto de vista em mais detalhes?
-O Juninho é o melhor de todos! Vai dar uma goleada no Atlético semana que vem. Aê, Mengoooo! A menos que o juiz roube. Juiz... tinha mais é que meter bala nesse bando de bandido. Passar fogo em tudo.
-Eu acho que é isso por enquanto, Zé Carlos. De volta para você.
-Obrigado, Joanete. O popular é sempre a melhor fonte de informações, hein? Eu também estou apostando no Mengão. Vale lembrar que foi o popular da classe média quem previu a tomada do governo pela Vossa Benevolência Luís Inácio Castro-Chavez Jong-Il Maldadepura. E estamos aqui com o secretário de segurança do estado. Secretário, como foi a operação? Tudo tranqüilo?
-Neguinho tava lá entocado, olhou prum lado, pá. Olhou pro outro, pá. Aí a casa caiu, véi. Pacificamo! Êeeeeeee!
-Hã...sim. Mas quais os planos para dar continuidade a essa pacificação? Algum plano social ou econômico?
-ÊEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE!!!!
-É, aparentemente tudo está bem de novo pelo Alemão. Para demonstrar isso, vamos fechar a edição com imagens de bebês sorrindo nas ruas e de gente pobre aliviada sabe-se lá por quanto tempo. Boa noite.

Nenhum comentário: